quarta-feira, 19 de outubro de 2016

“Spotlight – Segredos Revelados” Cinema.



“Spotlight – Segredos Revelados”

‘Spotlight’ aborda escândalo de pedofilia na Igreja Católica

“Spotlight – Segredos Revelados” não é apenas a exibição de um grande filme. Com tudo que um bom roteiro e uma boa direção podem fazer. É, antes de tudo, uma aula de jornalismo. Principalmente pelo tema escolhido: a crise da Igreja Católica com o escândalo sobre pedofilia nos Estados Unidos.

É uma oportunidade de ver como o jornalismo investigativo, ancorado numa editoria corajosa e comprometida, com uma equipe profissional de alto nível, consegue enfrentar o poderoso lobby de uma instituição poderosa e secular. Mostra a força da imprensa se digladiando com a da Igreja e da sociedade local, católica e conservadora, que fingia não saber o que acontecia nos porões da diocese de Boston. O filme retrata um momento ímpar do jornalismo; mas protagoniza também um soco impiedoso e sem escrúpulos no estômago da Igreja.

Spotlight recupera o trabalho de uma equipe de jornalistas do The Boston Globe, jornal de Boston (EUA), no começo dos anos 2000, sobre denúncias, surgidas ainda de forma muito tímida, de abusos sexuais envolvendo religiosos da Igreja Católica. Boston sempre foi uma cidade de tradição católica. O foco era um padre que tinha sido investigado anos antes e continuava atuando na Igreja, apesar de 130 relatos de abusos em menores, sem que nenhuma providência tivesse sido tomada.

Segundo o jornal britânico The Guardian, "o filme mostra que, na confraria sociável da mui leal e católica cidade de Boston, ninguém tinha grande interesse em quebrar o enjoado silêncio, cheia de vergonha, que tornou possível a cultura de abusos de padres e religiosos da Igreja Católica e, mesmo que de forma sutil, o filme sugere que o Boston Globe em si foi uma das instituições de Boston também afetadas pelo pecado da omissão. O jornal tinha provas ou denúncias de abusos 10 anos antes de a investigação retratada no filme começar. Mas de alguma forma havia um pacto não declarado para minimizar e “congelar” a história, que não andou. O que levou um novo editor, de origem judaica, e um repórter, ambos de fora de Boston, a iniciar as coisas” e provocar a direção do jornal.

O Boston Globe foi a primeira publicação mundial a denunciar a cúpula da Igreja, no início de 2002, de ter acobertado dezenas de padres acusados de molestar crianças e adolescentes. Na época, quando João Paulo II era o Papa, a mídia internacional repercutiu as reportagens do Boston Globe, mas a Igreja pareceu ainda não ter entendido a gravidade das denúncias. Pareceu surda e muda ante os depoimentos que foram aparecendo. O próprio cardeal americano, o todo poderoso Bernard Law, foi exposto ao se revelar documentos que comprovavam sua omissão diante das evidências de abusos por parte de padres da diocese.

Após a divulgação do escândalo, ainda se passaram 11 meses para o Papa João Paulo II aceitar sua renúncia. Ele foi afastado da diocese, mas recebeu uma “severa promoção”, como pároco de uma das igrejas-símbolo do Catolicismo, a Basílica de Santa Maria Maggiori, uma das quatro basílicas maiores de Roma. Ele só foi “punido” publicamente, muitos anos depois, em março de 2013, quando o recém eleito Papa Francisco visitou a Basílica e, ao vê-lo, não escondeu o constrangimento, dizendo que não “gostaria que Law frequentasse a Igreja”.

O escândalo revelado no início de 2002 pelo Boston Globe não foi suficiente para a Igreja Católica agir rapidamente. A cúpula da Igreja demorou a tomar providências sobre as acusações. Só acordou quando vítimas de abusos, por todo o mundo, foram para a Justiça, o que redundou em milhares de ações judiciais contra várias dioceses. Somente em Boston, até 2014, US$ 85 milhões foram pagos em indenizações; em Los Angeles, US$ 730 milhões; em Orange, US$ 100 milhões. Uma organização de bispos americanos estima que mais de US$ 3 bilhões foram pagos em indenizações a vítimas de pedofilia nos últimos anos, após o escândalo ser denunciado pelo Boston Globe.

Os depoimentos das vítimas nos Estados Unidos – dezenas de adultos que tiveram a coragem de denunciar – possibilitou que a partir daí milhares de pessoas que passaram em igrejas, colégios, abrigos, em vários países, saíssem das sombras, contando como foram abusadas, resultando num dos maiores escândalos da história da Igreja Católica. O ápice ocorreu por volta de 2010, quando na Irlanda, Espanha, Portugal, Alemanha e até mesmo no Brasil começaram a pipocar denúncias em cadeia. Revelou-se, então, o maior erro da Igreja, ao acobertar os acusados, transferindo-os de diocese, de igrejas, de cidades, onde eles continuavam com os abusos. Não havia registro policial; não havia punição. É desses erros que Bento XVI, depois, sob muita pressão, quando o escândalo tomou dimensão bem maior, em 2010, teve que pedir desculpas.



O filme tem o mérito de trazer para o cinema não apenas um episódio vergonhoso, que manchou a história da Igreja Católica, mas como o trabalho da imprensa, pela obstinação de alguns jornalistas, foi capaz de implodir um sistema hierárquico corrompido, conivente e autoprotegido. A sociedade sabia, muitos pais conheciam os abusos, a mídia também tomou conhecimento. Mas essa poeira, bastante indigesta para a hipócrata sociedade de Boston, foi varrida para baixo do tapete. Poucas vozes tiveram coragem de cutucar o vespeiro da Igreja. Alguns advogados, que aparecem no filme e ajudaram o trabalho da reportagem. Até a polícia se fechou. Prevaleceu durante anos a cultura do silêncio, inclusive com o respaldo das autoridades eclesiásticas e de Roma.

O excelente trabalho do diretor Tom McCarthy mostra como a cortina foi rasgada. O Papa Bento XVI teve que abordar o espinhoso tema e lamentar, porque, após as denúncias, não foi mais possível fingir que não sabia ou minimizar a gravidade dessa crise. Os tempos são outros. Mas há 13 anos, época de ambientação do filme Spotlight, o tema era considerado tabu, intocável. Esse o grande papel dos jornalistas, que mergulharam na reportagem, e da publicação, que lhes deu respaldo e condições de apurar, mesmo enfrentando resistência da sociedade, dos advogados, das fontes, de algumas vítimas, dos acusados, das autoridades e, no início, até da direção do jornal, sem falar no boicote ostensivo da Igreja local.

É nesse momento que a obstinação, o faro do jornalista e o trabalho investigativo brilha com toda a força, conseguindo levar de roldão toda uma estrutura criada para esconder os abusos. Passados 13 anos do acontecimento e cinco de quando o escândalo tomou dimensões globais, certamente que a Igreja Católica sai chamuscada desse filme. Mas, não há dúvidas, o jornalismo sai engrandecido.

É por isso que segundo o The Guardian, “este é um filme honrosamente destinado a evitar o sensacionalismo e a evitar o mau gosto envolvido, o que implica que os jornalistas, e não os sobreviventes de abuso infantil, são as pessoas realmente importantes aqui”.

O jornal americano ganhou o prêmio Pulitzer em 2003.

Os seis principais jornalistas da série Spotlight deram aos produtores opções dos direitos autorais sobre suas histórias (inicialmente sem qualquer custo), e assim começou o longo caminho de desenvolvimento do roteiro. McCarthy entrou na equipe em 2012, mas, pressionado por um outro projeto, ele precisou de um escritor. A Anonymous Content, empresa de produção e gestão que se associou aos produtores, contratou Singer, um ex-roteirista da série The West Wing, cujo interesse pelo jornalismo deu origem ao roteiro do filme sobre o WikiLeaks, O Quinto Poder.
Os dois tornaram-se rapidamente repórteres investigativos, e entrevistaram várias vezes os jornalistas sobre o projeto e suas vidas. Vasculharam os arquivos do Globe e os autos dos processos. Reuniram-se com outros jornalistas do jornal, com os sobreviventes dos abusos, com os advogados envolvidos ao longo dos anos e com os especialistas em hierarquia católica.
Mas lá no meio de seu trabalho de colaboração, McCarthy ainda perguntava a si mesmo e a Singer do que o filme trataria, além da importância do bom jornalismo. “Então, Josh e eu passamos a nos dar conta de um novo grau de relevância dessa história quando começamos a discutir a questão da cumplicidade e da deferência da sociedade”, o que incluía o próprio Globe, disse McCarthy. “Quando nos conscientizamos de que esses crimes não existem no vácuo, que são algo grande demais, que afetam gente demais, concluímos que as pessoas tinham de saber.”
Depois de conversar longamente por telefone com o repórter Mike Rezendes, que interpretaria na tela, Ruffalo viajou para Boston para seu primeiro encontro. “Sentamos na minha sala”, contou Rezendes. “Ele abriu um bloco de anotações e ligou seu iPhone, e foi me fazendo perguntas, não sobre como eu fiz o que fiz, mas por que fiz, por que escolhi essa profissão e por que decidi ser um repórter investigativo”.
Ruffalo gravou em vídeo Rezendes andando pelo apartamento espartano, imaculado, tirou fotos da estante de Rezendes e, inclusive, pediu que ele lesse o roteiro. Os outros repórteres receberam um tratamento mais ou menos igual. McAdams fez inúmeras perguntas a Sacha Pfeiffer sobre as coisas de sua preferência e suas conversações com a família a respeito da Igreja. A atriz também ouviu um programa de rádio que Pfeiffer apresentava de maneira a captar sua fala acelerada. Keaton perguntou a Walter V. Robinson, o editor do Spotlight, coisas completamente sem relação com a investigação. “Na realidade, eu queria conhecer Ted Williams, mas não me preocupei com certas coisas”, disse Keaton. “Só queria observá-lo, ver como ele se comportava.”



“Acredito que o papa tenha consciência disso. Se eu penso que o problema está resolvido? Não. Se eu acho que a igreja tem feito o que deveria fazer? Realmente não”, disse o cineasta à agência France-Presse. Apesar da crítica, McCarthy se diz um admirador do papa Francisco. “Este é um homem fascinante e interessante. Eu acredito nele. Mas veremos com o tempo”, conta.

A luta da igreja foi marcada por várias etapas. Em 2011, o Vaticano instou todas as conferências episcopais a colaborar com os juízes civis e desenvolver normas contra os padres culpados ou suspeitos; em 2013, a Santa Sé reforçou a legislação penal, acabando com a impunidade de seus prelados; em 2014, a Pontifícia Comissão para a Proteção Infantil, constituída por 17 especialistas, incluindo vítimas, foi criada. Em junho deste ano, o Vaticano também estabeleceu um corpo para julgar pela lei canônica os bispos que protegeram padres pedófilos.

O que aconteceu com Bernard Law, o padre vilão do filme ‘Spotlight’?
Em 2002, o jornal 'The Boston Globe' revelou centenas de casos de pedofilia cometidos por padres da Igreja Católica e o acobertamento dos crimes pelo arcebispo Law

Em 2002, a reportagem investigativa do jornal foi publicada e provocou um grande escândalo midiático. O cardeal Law acabou renunciando ao seu cargo. Contudo, segundo a emissora britânica BBC, a carreira eclesiástica do arcebispo não acabou, apesar de toda a pressão sob ele, que já foi considerado o sacerdote mais influente dos Estados Unidos no Vaticano.
A sua renúncia foi aceita pelo então papa João Paulo II, mas Law se mudou para Roma e, em 2004, foi nomeado arcipreste da Igreja de Santa Maria Maggiore, uma das quatro basílicas mais importantes da capital italiana, construída entre 432 e 440. Em abril de 2005, celebrou uma missa na Basílica de São Pedro, no Vaticano.

O cargo que exerce em Santa Maria Maggiore não é extremamente importante na hierarquia da Igreja Católica, é mais honorífico. Porém, Law não só manteve sua influência, como também não se preocupou em viver em sigilo, pode ser visto com frequência em celebrações religiosas ou eventos diplomáticos. O religioso manteve, inclusive, seu cargo no Colégio dos Cardeais e na Congregação para os Bispos, podendo assim continuar a nomear os bispos nos Estados Unidos.

Law nunca foi acusado de nenhum crime nem convidado a depor sobre os casos de pedofilia que aconteceram sob seu anos de comando da arquidiocese de Boston.

Padre brasileiro pode processar produtores do filme 'Spotlight'
A defesa do padre José Afonso Dé, que responde a processo por abuso sexual de adolescentes em Franca (SP), pretende entrar com um processo contra os produtores do filme "Spotlight – Segredos Revelados" após ser citado em uma lista mundial com casos de pedofilia.
A chamada "lista da vergonha" surge logo antes dos créditos finais do filme, que reconta a história verídica de jornalistas do "The Boston Globe" que, em 2002, revelaram como a Igreja Católica acobertou casos de pedofilia nos Estados Unidos. O filme concorre ao Oscar 2016.
Em 2011, o padre foi condenado a 60 anos de prisão e após entrar com recurso foi absolvido em seis das oito acusações que respondia. O sacerdote aguarda em liberdade resposta em relação a um recurso no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), alegando inocência nos dois casos restantes. Se a condenação for mantida, ainda cabe recurso em instâncias superiores.
Segundo o advogado José Chiachiri Neto, uma eventual absolvição plena do padre abre caminho para um processo contra os produtores de "Spotlight". "A partir do momento em que ele for absolvido em sua totalidade, abre a possibilidade dele entrar com a indenização", disse Chiachiri Neto.
"Seria uma indenização por lesão à honra, uma vez que o nome da cidade, o nome do padre teria sido lançado ao mundo através do filme", afirma.
Apesar de padre Dé não ser citado nominalmente, o nome de Franca na lista do filme pode relacionar às suspeitas contra o sacerdote, segundo o advogado. "Franca dentro de um contexto com casos de suspeita de pedofilia, se relaciona ao padre Dé".
Aos 82 anos, o padre mantém orientações a fiéis em sua casa e luta contra um câncer de próstata. De acordo com a Diocese de Franca, desde que as denúncias ficaram conhecidas, o padre Dé foi afastado de celebrações públicas, mas jamais foi desligado da igreja.



Spotlight – Segredos Revelados é um ótimo filme, apesar da infeliz escolha brasileira do subtítulo. Pode não ter tanta ação, mas é fiel à rotina jornalística e a história que adapta, com boa direção e roteiro. Retrata um tema de grande relevância e que tem de ser amplamente divulgado. Ele mostra como uma instituição de grande poder é capaz de omitir fatos e acobertá-los, além da dimensão que esse problema pode alcançar. O longa-metragem deve ser, sim.

Fontes: Veja, O Globo, Estadão, G1, Velha Onda, Youtube.